terça-feira, 19 de novembro de 2013

Ciência e Aplicação de Dicas Verbais - Parte 1

Esta é uma adaptação de um artigo que trata de um assunto muito pouco abordado em nossa profissão, ao menos (que eu saiba) aqui no Brasil. Já havia um tempo que gostaria de ter feito esta adaptação, mas acabou esquecida, arquivada em alguma gaveta do cérebro, ao fazer a Mentorship Nível 1 da Athletes Performance em Buenos Aires, me lembrei deste artigo dada a ênfase que os treinadores da empresa dedicaram a matéria, especialmente nas sessões práticas do curso.
Decidi dividir a adaptação em 2 partes em virtude do artigo ser um tanto extenso.
O termo "Coaching Cues", que fazia parte do título original (The Science and Application of Coaching Cues), traduzi como "Dicas/Instruções Verbais", creio que foi o que mais se encaixou, se houver uma forma mais adequada, avisem. Também inseri algumas figuras a fim de facilitar o entendimento, como de costume.
Aos que quiserem entrar no website do autor, aqui vai o link: samleahey.com

Vamos a leitura.



Ciência e Aplicação de Dicas Verbais
Sam Leahey

O que muitos consideram uma "arte" é bastante científico, e muitas vezes rotulamos as coisas usando expressões "artísticas" porque ainda não temos o total entendimento da ciência que está por trás. O que as pesquisas científicas fazem, é acelerar o processo de tentativa e erro através da avaliação do que era feito ou ainda, é uma doutrina profissional ou procedimento operacional padrão. Este artigo irá elucidar o que diz a literatura com respeito aos mecanismos de dicas verbais (N.T: Do já citado original em língua inglesa "coaching cues") e então propor aplicações práticas baseadas numa mistura de ciência, experiência com mentores, assim como a minha própria experiência prática.

O mesmo esforço que colocamos em programar o treino a fim de obter as adaptações fisiológicas e biomecânicas ótimas, deveria ser posto em como comunicamos nossa intenção. De fato, instruções verbais ruins dadas pelo treinador podem deprimir seriamente a performance motora dos atletas. Mudar de uma a duas palavras, ou uma sentença inteira quando ensinar uma nova tarefa motora ou reforçar tarefas antigas, tem efeitos significativos nos movimentos corporais dos atletas. Os conceitos chave e procedimentos de aplicações práticas que se seguem podem ajudar o treinador a obter resultados motores mais desejáveis.

Foco de Atenção das Dicas
Quer se esteja ensinando um novo exercício a um atleta ou reforçando um padrão de movimento já aprendido, acaba-se invocando um, dois ou ambos tipos de estratégias de atenção/foco: "interna" e/ou "externa" (Wulf 2007). Um foco interno ocorre quando um atleta está pensando a respeito de uma de suas próprias partes corporais durante a execução de uma tarefa ou movimento. Um foco de atenção externo ocorre quando um atleta pensa a respeito do efeito do seu movimento enquanto executa-o.
De maneira simples:

  • interno refere-se à uma parte do corpo do executante.
  • externo refere-se ao efeito do movimento.

Aqui estão alguns exemplos seguidos de uma explicação.

























No final das contas, o objetivo das dicas verbais é o resultado motor, obtido através da condução do movimento de maneira mais eficiente. O atleta move a medicine ball na velocidade máxima (externa) ou apenas se foca em estender os cotovelos de maneira rápida (interna) enquanto os ombros e o resto do corpo não estão respondendo de maneira ótima, pois este atleta está com o foco voltado para os cotovelos?
Este atleta foca apenas em estender o quadril/perna rapidamente (interna) sem aplicar muita força no solo a fim de aumentar a velocidade da corrida ou ele realmente empurra o solo atrás dele (externa), fazendo com que se mova mais rápido?
Objetivamente, o atleta é realmente forte/rápido/ágil ou apenas parece bem? O tipo de foco de atenção que o atleta adota é severamente influenciado por você, o treinador! Mesmo sutis diferenças nas instruções podem fazer uma grande diferença no resultado do movimento.

Uma grande quantidade de pesquisas tem demonstrado a superioridade de dicas com foco externo nos efeitos dos movimentos em uma variedade de tarefas motoras, tais como: manobras de agilidade, exercícios, habilidades esportivas, desafios à estabilidade, saltos e muito mais, usando várias unidades de medida diferentes (segundos, centímetros, passar X falhar, etc.) (Al-Abood et al. 2002, Marchant et al. 2009, Porter et al. 2010, Wulf 2008, Wulf et al. 1999, Wulf et al. 2003, Wu et al. 2011).  Quando eu não tinha todas estas referências, me lembro de ter lido o que o Dr. Verkhoshansky (N.T: Este dispensa apresentações, o Dr. Yuri Verkhoshansky é uma lenda no campo do Treinamento Esportivo) escreveu em um estudo analisando as performances de saltos em profundidades de grupos de atletas. A um grupo de atletas foi dito para: "passar o mínimo de tempo com os pés no solo quanto possível" e ao outro grupo foi dito: "salte o mais alto que puder e agarre a bola sobre sua cabeça" (para esse grupo, ele pendurou uma bola no alto a fim de que os atletas tentassem agarrarem-na). Ao primeiro grupo, obviamente foi dada uma dica verbal com foco interno (partes do corpo) enquanto que ao segundo, foi dada uma dica verbal com foco externo (efeito). O estudo conclui que o segundo grupo (foco externo) alcançou alturas de salto muito superiores ao primeiro.

Na minha experiência prática (embora eu tenha certeza que existam pesquisas sobre estes equipamentos), quando testo o salto vertical de meus atletas, eu sempre consigo números mais altos usando o Vertec do que quando uso o Just Jump Mat.
Vertec e Just Jump: Foco de Atenção Externo X  Foco de Atenção Interno

Tecnologia a parte, credito uma grande parte dos resultados ao fato do Vertec usar uma tarefa com foco externo (tocar a marca mais alta acima) enquanto que o Just Jump usa uma tarefa com foco interno (manter os joelhos e quadris estendidos para que o tempo no ar não influencie os resultados). Neste ponto podemos dizer inclusive que quanto mais externo for o foco da dica verbal melhor o resultado, embora isto não vá funcionar todas as vezes. Você pode usar qualquer unidade de medida que quiser (segundos, peso, centímetros, etc.) para conduzir seu próprio experimento, mas temos nossa própria dose de confiança empírica de que um foco de atenção externo resultará em um efeito superior nos movimentos. Este efeito tem sido demonstrado em atletas iniciantes e avançados, homens e mulheres, atletas sob pressão ou em uma população de pacientes (Landers et al. 2005, Porter and Anton 2011, Wulf 2008, Wulf 2007, Wulf et al. 2010, 2002, Wu et al. 2011).

Retorno de Informação (N.T: feedback), Frequência das Dicas e Aprendizado
Este conceito é muito similar ao escrito acima. Após ter ensinado um novo exercício ou movimento, você então fornece um feedback (retorno de informação). Quando desejar mudar (através de feedback) a mecânica corporal de um atleta, pode parecer contraintuitivo não referir-se a partes do corpo (foco interno), ainda que a maioria das pesquisas suporte a noção de que mudar imediatamente e permanentemente uma mecânica corporal é melhor realizado através de um direcionamento externo do foco de atenção (Wulf 2007). Dito isto, a experiência prática nos mostra que as vezes dicas verbais internas podem ser apropriadas. Especialmente se isto for uma progressão em direção a dicas verbais externas.

O que separa este conceito do dito acima é quão frequentemente devemos fornecer o retorno de informação à nossos atletas. Alguns diriam: "tanto quanto necessário", outros tentam fornecer o mínimo de dicas verbais aos aprendizes para que estes não se tornem dependentes disso (N.T: Aos que acompanham os trabalhos de Gray Cook, sabem que ele é um dos que advogam o mínimo de instruções verbais necessárias, com o argumento de que não aprendemos movimento através de dicas verbais e sim da percepção dos erros e acertos no processo de aprendizagem motora). Outros treinadores tentam esquematizar as dicas (ex: imediatamente antes da execução, logo depois, etc.). Dois estudos em particular (Wulf  et al. 2002, 2010) davam dicas verbais externas a um grupo após o desempenho de cada tarefa em particular (em 100% das execuções), depois somente em algumas execuções (em 33% delas), então fizeram a mesma coisa com outro grupo, só que agora fornecendo aos participantes dicas internas (em 100% e depois em 33% das execuções). Ambos estudos tiveram resultados similares - quanto mais externas fossem as dicas, melhor aprendida era a tarefa, quanto menos usavam dicas internas, melhor a tarefa era aprendida, e quanto mais eram usadas dicas internas, pior os executantes se saiam em aprender a tarefa de movimento dada. Na verdade, o grupo a que foi dado dicas externas em 100% das execuções, foi o que melhor se saiu em relação a todos os outros grupos em um teste de transferência de uma performance motora diferente. Neste caso, mais de uma coisa boa (dica externa), é uma boa coisa.

Hipótese da Ação Forçada e Automaticidade
Agora entendemos que na maioria (não em todas) das situações, um foco de atenção externo nos traz a performance mais eficiente e efetiva. Mas por quê? Como?
O mecanismo é muito interessante e não é o que se poderia pensar. Os cientistas do esporte chamam-na de "hipótese de ação forçada" (Wulf 2007).
A hipótese diz que:

"Focar-se de maneira consciente em movimentos de uma ação motora, quebra o processo de controle motor automático que regula movimentos coordenados. Quando atletas se focam de maneira ativa e consciente em controlar seus movimentos, eles interrompem os processos de comportamentos motores inconscientes e automáticos que normalmente tomam conta de maneira eficiente de nossos movimentos. Em contraste, o direcionamento externo da atenção, focando-se nos efeitos do movimento, permite ao sistema de controle motor regular e organizar naturalmente as ações motoras. Como resultado, o movimento é inconsciente, rápido e reflexivo" (Wu et al. 2011).

Quando pensamos em movimentos "naturais" e "reflexos", seja um exercício ou uma manobra de agilidade, queremos movimento fluido que recrute somente os músculos necessários para cumprir de maneira ótima a tarefa. Significando que não precisamos que um monte de músculos não relacionados com a tarefa sejam ativados, isto irá causar um atraso na execução. Gray Cook, refere-se a este fenômeno como estratégias de "alto limiar e baixo limiar". Essencialmente, quando ocorre uma atividade aumentada em uma determinada tarefa de movimento, deveríamos desejar um aumento na eficiência de recrutamento de unidades motoras, não apenas mais unidades motoras. Isto poupa calorias também. Por exemplo, um estudo (Zachry et al. 2005), colocou atletas de basquete a fazerem arremessos de lance livre, enquanto a um grupo foram dadas instruções para se focarem na flexão do punho (interna), outro grupo foi instruído a se focar na borda do aro (externa). O grupo da instrução interna produziu maior atividade eletromiográfica do que o grupo de instruções externas nos músculos bíceps e tríceps braquial, ainda que as instruções tivessem sido específicas à flexão de punho. Esta é a "estratégia de alto limiar" em ação. Um estudo de abrir os olhos (Wu et al. 2011), analisou a força produzida e a distância do salto horizontal. Todos os sujeitos (n=21) experimentaram instruções verbais internas e externas. Na média eles encontraram um pico de força similar, embora ligeiramente maior nos sujeitos instruídos com foco interno, mas estes sujeitos não saltavam tão longe quanto os sujeitos instruídos com foco externo (ver o gráfico abaixo).
Significando: Sujeitos quando recebiam instruções com foco de atenção interno produziam maior força no movimento de salto, mas na realidade saltavam uma distância menor dos que recebiam instruções com foco externo!






















































Novamente, as razões porque isto ocorre são devidas ao que foi descrito no texto acima. O componente de sincronicidade do movimento de salto pode ter sido diferente entre os saltos, fazendo com que quando os indivíduos fossem instruídos com foco interno o movimento parecesse menos natural, impulsivo e reflexo. Estudos como este demonstram a eficácia de adotar dicas verbais com foco externo a fim de facilitar a efetividade e eficiência do movimento.


Finalizamos o artigo na semana que vem.
Grande abraço a todos os leitores.


Confira a parte 2: Ciência e Aplicação de Dicas Verbais - Parte 2


Nenhum comentário:

Postar um comentário